segunda-feira, 30 de junho de 2008

A porta fechada

Foi a segunda vez que fiquei trancado para fora de casa. Da primeira, perdera a chave. Dessa vez a porta emperrou. Demorou mais de uma semana até encontrar um bom chaveiro que a abrisse por um preço justo. Um que me atendesse. Chaveiros têm muito trabalho, as pessoas sempre perdem chaves.
Contive todos os impulsos de me lamentar e praguejar contra a porta emperrada, o chaveiro que marcava e não vinha, os momentos de descanso e solidão em meu lar que eu estava "perdendo". Já estou calejado o bastante (basta um pouco) para saber que as dificuldades têm o objetivo de ensinar. Ensinar... aquilo que pedimos aprender, subconscientemente, por meio de nossas ações errantes.
Ficar na rua, carregando de lá para cá minhas coisas pesadas, passar um dia todo no hospital, tudo isso rapidamente me fez ver o quanto ainda sou dependente das coisas que julgo ter. "Minha" casa. "Meu quarto". "Minha comida" na geladeira.
Toda dependência é uma prisão.
Aonde espero chegar preso ao que "tenho"? Vejo-me com os braços largamente em círculo, como tentando abraçar todas as minhas "posses". Tudo o que é meu. Tudo que não quero perder. Por menos que seja eu não quero me arriscar a jogar... fora? Que diabos estou dizendo?? E fazendo??
A recompensa para os corajosos que correm esse risco é ser feliz.

Gosto de ser testado. Sei do poder das palavras e, quando as digo, é como um desafio, eu sei que o que eu disser de coração será provado. Para o meu bem, para que - a começar em mim - todos possam se fiar no que eu disser. Digo sempre que dinheiro e conforto me importam pouco ou nada.
Uma semana errando por essa selva foi um bom teste. Para eu saber se estou mesmo disposto a viver da forma que abro a boca e falo por aí. A resposta é: estou disposto. E em guarda.
Deixei rolar, aproveitei. Parei de me focar no que não "tinha", não vou desperdiçar tempo, vida, remoendo a desilusão de possuir.
Foi bom... fui "forçado" a vários passeios. Conhecer a casa de uma amiga que mora perto, e de outra forma, talvez, eu não teria ido até hoje. Uma fabulosa peça de teatro que eu muitas vezes adiara, e teria perdido, pelo "conforto" de meu lar.
Richard Bach... Ilusões... Volto sempre àquele jogo de se refazer perguntas. "Onde é meu lar?" Resposta: Minha casa? Um bem tão passageiro? Que hoje está sob "meu" poder, e amanhã estará emperrada? Se eu perder a minha casa, se eu perder a chave, ficarei sem lar? "Onde é meu lar"? Jack London construiu uma casa para durar mil anos. Queimou inteira na mesma geração. Virou cinza. É o que acontece com as ilusões e as posses.
Seja eu uma porta sempre aberta.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Foi lá no mar que eu vi
Foi lá no mar que eu vi serenar
Quando a sereia entrou devagar
No meu castelo de areia, oia iá

Meu amor, eu cheguei agora
Eu venho lá do alto mar
Vim pegar conchinhas na praia, sereia
Para pôr no seu congá

Foi lá no mar que eu vi
Foi lá no mar que eu vi serenar
Quando a sereia entrou devagar
No meu castelo de areia, oia iá

Meu amor, eu já vou-me embora
Eu vou pela beira do mar
Vou buscar uma flor de laranja, morena
Pra o seu cabelo enfeitar

Foi lá no mar que eu vi...

domingo, 22 de junho de 2008

A liga

Leitmotiv é, no original alemão, algo como "motivo que liga". Liga elos aparentemente desconexos da mente ou de uma obra narrativa (musical, dramática ou literária) entre si, adquirindo coerência; liga o autor às criações de sua mente, deixando pistas ao longo do conjunto de sua obra. Ainda que jamais escreva ou componha, tudo que o homem faz é linguagem, então uma mensagem será dita e a mensagem é Eu sou.
As pistas querem ser descobertas. Porém qualquer linguagem requer um receptor que compreenda o código e possa decifrá-la. Muitas vezes a peça é encenada para uma sala às moscas; e pior, nem o próprio ator/autor se analisa, se assiste, se aplaude, ou vaia. Ignora as falas de seu corpo, seus traquejos, seus vícios. Ignora os seus sonhos. Ignora seus sentidos.
Na escrita, leitmotiv é a razão por quê se escreve. Quase nunca aparece abertamente, mas se deixa ver nas entrelinhas, nos cantos escuros, em outros nem tanto. Está em todo lugar e cabe procurá-la; é sempre bom olhar os buracos das fechaduras, debaixo dos tapetes, nas copas das árvores, por trás das vozes embargadas...
Para quem escreve o prazer (e a dor) está em espalhar, esconder, infiltrar, sugerir o motivo, enquanto cria. É como um ponto de repouso, aonde pode, depois dos vôos mais altos, ou da tempestade mais caótica, ou ainda do silêncio mais profundo, retornar. Onde firmar os pés e readquirir equilíbrio. Alinhar o olhar com o horizonte e enxergar como um mortal. É preciso encontrar, antes de tudo, esse lugar.
Para se ter um motivo para escrever, é necessário um motivo para viver. Se a resposta à sua questão não interessa a si próprio, dificilmente irá fazer alguém perder tempo lendo.
Leitmotiv é o elemento terra, na narração.
É uma verdade individual, ou uma angústia, uma ânsia por verdade que interesse a todos pela inventividade e sutileza com que foi encontrada. Ou por seu conteúdo humanista, ou por afinidade de objetivos, ou por simples empatia. O que vale é ler, procurar.

Na música, similarmente, leitmotiv é o tema que se repete, como um ponto de descanso. É sempre referida na obra clássica do compositor alemão Wagner, mas também se identifica claramente no Jazz, onde caminhos inimagináveis abertos pela improvisação deságuam sempre em um tema já ouvido, um ambiente familiar onde sentimos proteção, calor e conforto.
O elemento terra. O nascimento. Deitar-se no colo da mãe, e ficar...

A psicanálise, a propósito, é uma arte de leitura, de investigação. Consiste em entender o que se passa no íntimo de alguém enquanto ele pensa estar falando de outras coisas. O psicanalista segue pistas. Muitas são falsas; para superar essa barreira, ele, da mesma forma que se faz nas investigações criminais, busca por grupos de pistas que dêem coerência umas às outras. Em outras palavras, identifica nas repetidas condutas do analisado o seu leitmotiv. Inconsciente, forjado por anos de amadurecimento e acelerado por gatilhos escondidos em sua história.
Escrever, compor, é terapêutico. Não acuse falta de tempo. Você economizará o dobro de tempo deixando de se perguntar depois "por quê fui fazer isso?".
Ou, pelo menos, leia um livro. Pode ser aquele que você vai escrevendo, dia-a-dia, e nem percebe.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Eu vou levantar
Eu vou levantar oia iá
Erguer a poeira do chão
Tomar um caminho
Direção ao luar
Deitar minha capa na estrada,
Cantar, disparada,
Calor, coração
Andar no esplendor da alvorada
Em praias salgadas
Barulhos do mar
Sonhar com a alma esperada,
No rosto das águas,
Seu colo iaiá

domingo, 15 de junho de 2008

A escolha

Salomão podia escolher ser invencível na guerra.
Que seu templo nunca viesse abaixo.
Que seu nome jamais fosse esquecido.
Podia escolher saúde.
Riquezas. Paz. Conforto.
Podia escolher ser imortal.
Podia escolher o que quisesse.

Salomão podia até escolher felicidade.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Caçada

Começou quando um famoso escritor internacional me pediu que eu reparasse em como, nos transportes coletivos, as mulheres procuram esconder o título do livro que estão lendo, ao passo que os homens fazem questão de mostrar.
Oportunidade para fazer o teste, de sobra; utilizo metrô e ônibus várias vezes por dia.

A primeira descoberta foi a de que sim, é verdade. As senhoras e as moças guardam o livro no colo com a frente virada para baixo e a lombada para dentro, impedindo a leitura do título. Ou, quando estão lendo, cobrem a maior parte possível da capa com a mão. (Às vezes é possível ver apenas letras ou partes de letras, é como jogar forca). Já homens lêem com o livro erguido, ou o deixam no colo com o rosto para cima, e repetidamente tocam nele, ajeitando-o, claramente fascinados com o poder de o livro revelar quem é aquele que o segura.

Depois, redescobri aquilo que eu já sabia, mas, como tudo que é óbvio, fora esquecido... como é interessante examinar as pessoas. O metrô é ideal. Os assentos são dispostos como em uma sala. Fica-se de frente um para o outro. Se se posicionar bem pode ver praticamente todas as pessoas do vagão.

Observar as pessoas de pé é diferente de observá-las sentado. (Ângulo de visão é um fator determinante, nisso ou na vida. Perspectiva).

Outro dia vi uma menina que estava na última folha de um livro! O título era impossível ver, ela o protegia como se fosse sua própria vida. Pus-me então a degustar as linhas do seu rosto... pareceu um pouco ansiosa, no início. Depois de súbito suas sobrancelhas ficaram suaves. Relaxamos um pouco. Em certo momento ela apertou os olhos, como num esforço para entender. Fez bico com os lábios, quase balbuciando. Passou o indicador pela página, na horizontal, curtamente. Uma palavra, no máximo uma expressão. Mas vi no rosto dela que a compreensão do trecho era essencial para toda a resolução da trama.
Quando finalmente pareceu que ela ia avançar como um destemido barco até o último ponto, algo aconteceu. Ela parou. Descuidou-se totalmente da leitura. Percebi que seu coração acelerara. Até me deixou ver o nome do autor. Abriu os olhos assustadamente. Fez um esforço para respirar. Engoliu saliva. Empertigou o corpo e tirou do bolso da frente do jeans um celular e o que leu no visor, demoradamente e várias vezes, a fez esquecer o livro e todo o resto.

A maioria das pessoas considera perdido o tempo passado em trânsito. É em busca desse tempo que estou. Aprenderei a caçar as horas, em qualquer floresta de verde ou de cinza.
Que pensem assim e se entreguem, desnudas. Como se o dia, a vida, começassem ao descer do metrô. Alheias. Presas desprotegidas... Hum...
Gosto de ver a humanidade nas pessoas. A barra da calça dobrada com cuidado. As imperfeições. O cansaço. As rugas da emoção ou da idade. Fios de cabelo rebeldes. Suor. As unhas.
Pode ser uma valiosa ajuda para a construção de um personagem. Construir um personagem também pode te ajudar a enxergar melhor as pessoas. Um autor dá a mesma vida a justos e injustos, assim como o sol brilha sobre todos. Respeite as pessoas como se fossem sua cria. Sua ficção.

Para um personagem merecer que se escreva sua história, é preciso que ele tenha algo a ganhar, que haja espaço para onde ele vá ou não crescer emocional e intelectualmente. Passei a procurar isso nas pessoas. Gosto dos que estão como em uma bóia, olhando admirados ao redor, com receio mas muita vontade de nadar sob o sol. No mar é você quem precisa saber o caminho. E colher os ventos invisíveis que vêm das quatro direções.

(Velhos e velhas não lêem no transporte coletivo. Talvez já tenham se cansado, se não suas vistas).

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Meu filho foi viajar
Foi por sobre as águas do mar
E eu fiquei perdida, chorando
Navio navegando
Não vai mais voltar

Esse barco malvado
Leva todos prisioneiros
Ele é um navio negreiro
Homens livres estão
Nas galés

Meu querido filho
Não deixe a raiva o matar
Semeia nesse país distante
Os frutos constantes
De seu ideal

Ensina esse povo a dançar
Para espantar todo mal
Com cantigas ninar as crianças
Jogar capoeira
Tocar berimbau