segunda-feira, 28 de abril de 2008

A construção

O ônibus começou a se afastar da cidade. Às margens da pista a natureza ia tomando conta, ora com matas fechadas, ora pastos extensos ponteados por castanheiras mortas. A lei proíbe que se cortem as castanheiras, mas nada impede depredar-se toda a vegetação ao seu redor, e essas árvores morrem sem estar cercadas de verde. Assim se formam os "cemitérios de castanheiras". Mas esta viagem não seria tão longa.
A passageira ao meu lado tinha o rosto cansado. Sorriu. Não apenas com a boca como fazem muitos falsários quando fingem sorrir, mas também com os olhos enrugados, o queixo e as maçãs. Perguntei sobre o Ramal que desejava achar. Não soube dizer. Procurei um pedaço de papel anotado, em meus bolsos. Disse um outro nome do lugar. "Ah. É uma dessas entradas, mais pra frente".
Lá desci. Avancei pela rua de terra, observando as pessoas. A natureza, ao fundo. A simples visão do horizonte coberto de árvores me bastava para estar em outra realidade, outra dimensão alheia à minha vida, meus pensamentos costumeiros. Segui, vendo as chácaras se sucederem, até que passei por um grande galpão onde trabalhadores, a maioria jovens, serravam, separavam e empilhavam madeira. Depois dela, uma rua de terra, à esquerda. E uma pequena entrada. Flores. Parecia muito pouco com minhas lembranças de um ano atrás. Hesitei por quase um minuto, e entrei.
Passei pela frente de um grande salão, com o nome do lugar pintado em cima da porta. Nome enorme que eu não consegui fazer caber em uma foto. Flores, patos, fogão de lenha, barracos. Uma casa.

Fiquei sentado em uma cadeira de madeira, na varanda, aguardando o Mestre. Eu conversava com algumas pessoas do lugar, mas sem me concentrar. Sentia-me ansioso, sabia que ele não se lembraria de mim e simplesmente não conseguia pensar no que perguntar a ele. Todas as minhas dúvidas me pareciam estúpidas ou vaidosas. O mestre detinha uma grande sabedoria, a qual no entanto expressava em termos muito simples, e assim minha intelectualidade, e os livros que eu lera, de nada me valiam em uma conversa com ele.
Quando ele apareceu, tudo se repetiu de forma idêntica. Eu gaguejava a cada pergunta tola que tentava formular. A força de sua intuição me assombrava e inibia. Parecia saber de tudo, conhecer os segredos das coisas só de olhar para elas. E eu, como um menino, não conseguia deixar de tentar elaborar perguntas e organizar na minha mente a experiência, com coerência e lógica.
Finalmente ele acabou com minha agonia, e levantando-se me convidou a conhecer a horta e uma nova construção. A caminhada substituiu a agitação mental. Já alguns homens nos acompanhavam. Vi a horta e os que cuidavam dela. É o que eu pintaria, em um quadro. O homem dando sua seiva para alimentar outras pessoas, as rugas e o suor se transformando novamente em energia.
Dias depois, uma amiga, uma linda artista, se emocionaria com o velho negro que cuidava da horta. O homem admirou-se de sua formosura, com certeza não só de sua beleza física, mas da espiritual também, e ofereceu a ela um pé de alface. Como ameaçou recusar o velho fez uma cara triste, pensou, pensou, mas concluiu não ter mais nada a oferecer, e desculpou-se. Foi mesmo de chorar.

Seguimos. Em nenhum momento a natureza deixava de ser exuberante ao redor, cheia de árvores, inclusive frutíferas, e vez por outra uma enorme se destacava das outras. Mais abaixo, chegamos a um barracão já pronto; de longe o que vi era um menino dançando algo que me lembrou um boi-bumbá, mas moderno; sobre uma mesinha um rádio tocava boa música brasileira, ao largo várias redes de deitar esticadas, e pense em uma sombra gostosa! Me vi completamente calmo, relaxado. Estranhei a mudança repentina em meu organismo, que em nenhum momento eu comandara com minha própria intenção. O menino parecia ter menos do que os 13 anos que me disse, desligou o rádio, disse "vambora". Havia caminho a seguir. Um novo barracão se erigia.

Andamos por trilha entre o mato, chegamos a um novo descampado. Neste se viam apenas alguns buracos fundos, no chão, da largura de uma pessoa em pé. A distância entre os buracos também era de uma pessoa, deitada. Formavam um retângulo. Dentro dele, carrinho de mão, ferramentas, um arbusto, algumas toras, blocos quebrados.
Logo começaram a chegar alguns homens, pegando as ferramentas com súbita urgência, dois foram depressa buscar cadeiras, outro parecia ser o líder e explicava ao Mestre sobre o andamento da obra, e os percalços, enquanto dava ordens para os meninos, apenas com olhos e gestos.
Nos sentamos. O Mestre tomava o seu mate quente em uma cuia, tinha também água fresca mas pegou uma outra garrafa e dela encheu um copo para mim. Eu bebi. Bebi também água.
Ainda tentei fazer algumas perguntas, dizer algo que pudesse soar inteligente e assim incentivá-lo a me ensinar alguma coisa, mas Mestre parecia nem notar que eu estava ali. Pior, uma hora até me perguntou qualquer coisa trivial, de forma cordial mas distante, como se me consolasse pela minha insignificância, minha curiosidade imatura.
Pus-me em silêncio; foi algo que também não planejei, mas fiz, passei a observar o trabalho. Alguns traziam os blocos nas carriolas, outros os quebravam, de dois em dois levantavam as toras deslizando-as para dentro dos buracos. O que os liderava preocupava-se com a retidão entre as toras, media tudo com uma linha branca e pesos, que usava de forma misteriosa para mim.
De tempos em tempos alguém vinha consultar o Mestre, sobre diversos assuntos. Dúvidas sobre a obra, mas também sobre as rotinas do local, outro perguntou quanto seria um valor justo para vender certo utensílio a um "irmão". Outro vinha e dizia algo, uma anedota, a fim de o fazer rir. Vi de perto a admiração e o respeito dos rapazes por ele.
Nesse momento me lembrei do outro eu, o inseguro, tolo, vaidoso e imaturo. Uma lembrança vaga, como se fosse outra pessoa. Senti que eu podia me ver. Pisquei os olhos lentamente, pareciam pesados; minha cabeça também; um peso cômodo, um ponto de gravidade no centro de minha mente, minha cabeça parecia um pêndulo. Equilibrei-a tomando consciência de meu pescoço, a força e flexibilidade de seus músculos. Alinhei o meu olhar com o horizonte. A beleza das folhas, árvores, dos pássaros que voavam e faziam barulho saltou aos meu olhos de uma forma incrível. Eu já enxergara assim, mas não era sempre. Sua luminosidade e cores pulavam para dentro de mim, eu sentia as cores despertas em meu corpo, os chacras se abrindo, cada um com sua temperatura e som característicos.
Voltei a olhar os homens trabalhando. Como quebravam os blocos, misturavam-no a terra preenchendo os vãos para firmar as toras. Todas de pé, eu pude "ver" o edifício erguido. Suas colunas, suas bases, estavam levantadas. Aquelas que o iriam sustentar e elas já diziam tudo sobre ele. As ripas por cima viriam depois, e só no final é que tudo seria coberto por palha trançada. A natureza transformada em moradia. Estava atento também à mudança silenciosa que ocorria em mim. "Vi", junto com a construção do barracão, a construção do homem.
Notei como era perfeita a analogia entre o ser humano e uma casa. A necessidade de alicerce; de estar reto; a feitura, de baixo pra cima; o poder fechar-se e abrir janelas, e portas; permitir que alguém entre, e more. Pensei na maçonaria. Um compasso e um esquadro. Deus, o "Grande Arquiteto do Universo". Leis cósmicas, matemáticas e universais regendo as formas geométricas, a disposição dos astros, o madurar de uma fruta, a construção de uma casa, o crescimento do homem. Pensei no Rei Salomão, sua presença nos ritos secretos maçons, seu nome escrito na entrada do lugar em que eu estava, perto da floresta Amazônica.

Veio até nós aquele menino, serelepe, desajeitadamente avançando por cima do Mestre para apanhar a garrafa e tomar mate quente. O Mestre lhe disse as palavras de sempre: Acalme-se, jovem, com seu ar bondade, e dessa vez acrescentou: Movimente-se o menos possível.
Sorri, por dentro e por fora, com cada músculo e nervo da face, com a quietidão de meu corpo e a disposição de minha alma, ao ouvir um ensinamento tão sábio, exatamente o que meu corpo há tempos me sussurrava e eu agora sabia por inteiro.
De repente toda a calmaria se acabou com vários gritos, gritos seguidos, como aqueles de alerta. Era um rapaz que com enxada atacara o arbusto, batendo nele duas vezes antes que o parassem. Pensava ter arrancado uma galhada seca, mas soube então que era a Chacrona. A luz.
Foi rapidamente perdoado. Sagrada a planta, o feminino, o princípio. Mas mais importante sua vida, a centelha que habita no humilde rapaz.

O incidente ajudou a se decretar o fim dos trabalhos, vieram se sentar sobre um tronco, fechando um mal traçado círculo comigo e o Mestre, e assisti ao pôr-do sol ouvindo histórias de caçadas.
Passamos de volta pelo outro barracão, onde ficamos eu, Mestre, o menino, uma moça. Esta trocara o Cd e uma música muito agradável estava a tocar. O alargamento de minha percepção se estendia também aos sons, ouvia separadamente cada vibração, com nitidez e harmonia, e a letra da canção era como as palavras de um amigo.
Sentia-me muito tranquilo. Passara a admirar mais o Mestre em seu silêncio, não queria ir embora. Queria ficar ali, quieto, aprendendo, e sabia que de meu silêncio ele poderia também perceber a minha disposição em conhecer e ajudar.
Chegou alguém. Escurecera. O homem sentou na outra ponta, bem longe de mim e não perto do Mestre e da moça. Botou os cotovelos sobre as coxas segurando o rosto com as mãos. De longe percebi a expressão de seu corpo e sua face, demonstrando estar contrariado, como uma criança, aguardando que seu pai viesse restaurar aquilo que perdera.
O Mestre esperou alguns minutos, e foi até lá. O que te aflige, meu filho?
O rapaz contou que na verdade se sentia bem, o Mestre era muito bom para ele, ele agora se sentia forte, tinha conseguido a promessa de um emprego e queria sair dali, ir para a cidade, tentar fazer a sua vida.
Fiquei impressionado com o que se seguiu. O Mestre começou falando no mesmo ritmo dele, com certa indolência, hesitante; mas de repente a sua fala adquiriu a direção e a velocidade de uma flecha; seu rosto e corpo ganharam autoridade e firmeza; suas palavras foram como o corte preciso de um fio de metal; a clareza e a sobriedade com que ele falou impediu qualquer reação do rapaz, que se resignou em silêncio.

Saímos dali. Anoitecera e eu ia voltar à cidade.
Ainda paramos mais uma vez na varanda e conversamos um pouco, sentados em cadeiras de madeira. Eu ainda sentia a consciência um pouco alterada, pouca coisa na minha percepção, e conversei com o Mestre da maneira que eu desejava ter conversado desde o início, desde o ano anterior.
Olhando para mim mesmo descobri quão pouco vale a minha imagem. A imagem inventada, esta nada vale. Nos revelamos, sim, no plano visual, mas fazemos isso quando estamos distraídos, ou concentrados em outra coisa. Eu não me preocupava mais com o que eu parecia, fixei-me em ouvir os seus ensinamentos e as palavras se formavam em minha mente, naturalmente me ocorreram as dúvidas sublimes, perguntas pertinentes, e com que histórias ele respondeu!... Quisera eu ter o dom de contar, igualzinho, a vocês...

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Lutar...

Seja um valente lutador. Aprenda, com os guerreiros, a enxergar as dificuldades como desafios a serem respeitados, estudados e vencidos.
Assim você dimensiona as coisas a seu favor.
Pois, na pele um guerreiro, amará os desafios, saberá lhes dar valor, aos grandes e aos pequenos. Perderá o medo dos percalços.

Um guerreiro pode ser alguém com uma espada, em posição de guarda.
Pois é assim: quando se aprende algo a primeira coisa que se deseja é testar, precisa-se de alguém que o desafie, a fim de mostrar o que aprendeu.
Simulamos esquecer disso e lamentamos todas as dificuldades como sinas pesadas que não merecíamos.

Um guerreiro luta até o fim, e depois pára. Sabe quando perdeu, e recolhe suas energias para a próxima batalha.
Para aprender a lidar com as perdas, comece com as pequenas.
Aceite. Não haveria ganhos sem perdas.

Aprenda com outros guerreiros sobre o guerreiro que é você.

Um guerreiro necessita muito mais de conhecimento que de força.
Precisa conhecer seu inimigo, para saber em que ponto atacar.
Precisa conhecer-se, para saber com quais virtudes poderá contar, na hora da luta.
De igual forma, conhecerá seus próprios defeitos e saberá o que fazer com eles; separará o joio do trigo. Quer dizer, respeitará e aceitará em si os defeitos que dão sustento às sua virtudes, e procurará descartar os vícios que apenas o envenenam.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

terça-feira, 15 de abril de 2008

Meditação das virtudes

Simplicidade. Humildade. Bondade. Amor. Sabedoria. Paciência. Esperança. Fé. Entusiasmo. Determinação. Valentia. Força. Coragem. Pureza. Tolerância. Coerência. Clareza. Amizade. Habilidade. Destreza. Serenidade. Lealdade. Fidelidade. Alegria. Otimismo. Visão. Inocência. Concentração. Firmeza. Desapego. Atenção. Inteligência. Prudência. Sensibilidade. Leveza. Seriedade. Honra. Criatividade. Bom-gosto. Compaixão. Curiosidade. Ousadia. Equilíbrio.