Começou quando um famoso escritor internacional me pediu que eu reparasse em como, nos transportes coletivos, as mulheres procuram esconder o título do livro que estão lendo, ao passo que os homens fazem questão de mostrar.
Oportunidade para fazer o teste, de sobra; utilizo metrô e ônibus várias vezes por dia.
A primeira descoberta foi a de que sim, é verdade. As senhoras e as moças guardam o livro no colo com a frente virada para baixo e a lombada para dentro, impedindo a leitura do título. Ou, quando estão lendo, cobrem a maior parte possível da capa com a mão. (Às vezes é possível ver apenas letras ou partes de letras, é como jogar forca). Já homens lêem com o livro erguido, ou o deixam no colo com o rosto para cima, e repetidamente tocam nele, ajeitando-o, claramente fascinados com o poder de o livro revelar quem é aquele que o segura.
Depois, redescobri aquilo que eu já sabia, mas, como tudo que é óbvio, fora esquecido... como é interessante examinar as pessoas. O metrô é ideal. Os assentos são dispostos como em uma sala. Fica-se de frente um para o outro. Se se posicionar bem pode ver praticamente todas as pessoas do vagão.
Observar as pessoas de pé é diferente de observá-las sentado. (Ângulo de visão é um fator determinante, nisso ou na vida. Perspectiva).
Outro dia vi uma menina que estava na última folha de um livro! O título era impossível ver, ela o protegia como se fosse sua própria vida. Pus-me então a degustar as linhas do seu rosto... pareceu um pouco ansiosa, no início. Depois de súbito suas sobrancelhas ficaram suaves. Relaxamos um pouco. Em certo momento ela apertou os olhos, como num esforço para entender. Fez bico com os lábios, quase balbuciando. Passou o indicador pela página, na horizontal, curtamente. Uma palavra, no máximo uma expressão. Mas vi no rosto dela que a compreensão do trecho era essencial para toda a resolução da trama.
Quando finalmente pareceu que ela ia avançar como um destemido barco até o último ponto, algo aconteceu. Ela parou. Descuidou-se totalmente da leitura. Percebi que seu coração acelerara. Até me deixou ver o nome do autor. Abriu os olhos assustadamente. Fez um esforço para respirar. Engoliu saliva. Empertigou o corpo e tirou do bolso da frente do jeans um celular e o que leu no visor, demoradamente e várias vezes, a fez esquecer o livro e todo o resto.
A maioria das pessoas considera perdido o tempo passado em trânsito. É em busca desse tempo que estou. Aprenderei a caçar as horas, em qualquer floresta de verde ou de cinza.
Que pensem assim e se entreguem, desnudas. Como se o dia, a vida, começassem ao descer do metrô. Alheias. Presas desprotegidas... Hum...
Gosto de ver a humanidade nas pessoas. A barra da calça dobrada com cuidado. As imperfeições. O cansaço. As rugas da emoção ou da idade. Fios de cabelo rebeldes. Suor. As unhas.
Pode ser uma valiosa ajuda para a construção de um personagem. Construir um personagem também pode te ajudar a enxergar melhor as pessoas. Um autor dá a mesma vida a justos e injustos, assim como o sol brilha sobre todos. Respeite as pessoas como se fossem sua cria. Sua ficção.
Para um personagem merecer que se escreva sua história, é preciso que ele tenha algo a ganhar, que haja espaço para onde ele vá ou não crescer emocional e intelectualmente. Passei a procurar isso nas pessoas. Gosto dos que estão como em uma bóia, olhando admirados ao redor, com receio mas muita vontade de nadar sob o sol. No mar é você quem precisa saber o caminho. E colher os ventos invisíveis que vêm das quatro direções.
(Velhos e velhas não lêem no transporte coletivo. Talvez já tenham se cansado, se não suas vistas).
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Um comentário:
o poeta do cotidiano, rodox, o menino do dedo verde
linda crônica, para sempre
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