Tomei todo o soro na veia, demorou umas duas horas. Tem uma torneirinha onde regulam a velocidade e o meu estava bem devagar. Pessoas entraram, tomaram o mesmo tanto que eu e saíram enquanto eu continuava lá, e o líquido no tubo parecia não ter diminuído nada.
Aproveitei a oportunidade para praticar observação da linguagem corporal, mas aos meus olhos turvos era tudo muito igual, a repulsa das mulheres contra uma agulha enfiada em seu corpo, os homens tentando dissimular o seu medo.
Cochilei...
Não me sentia melhor, mas também não quis esperar de novo horas pela médica, apesar de sua feminilidade e beleza. Então saí.
Me senti só. Me senti um pequeno menino mimado, carente de cuidados de mãe. Passei o dia no hospital! Ninguém me liga pra saber como eu estou?
Auto-observação, assim como falar com as plantas, faz você rir de si mesmo, ver como é ridículo. E quando você mesmo se diz isso, então não há ofensa, e é o primeiro passo para uma verdadeira mudança.
Saí andando. Da Liberdade fui para a Praça da Sé. Mochila pesada. Parte de "minhas posses" aindava maltratavam minhas costas. Alguma bagagem é necessária, o peso me impede de sair voando sem controle nem rumo. Mas não muita.
Na Praça ficam a estação do metrô Sé, a mais movimentada de São Paulo, e a catedral da Sé. Em qualquer dia a essa hora tem um monte de gente sentada nas escadas da igreja. Fico imaginando quanta gente diferente. Ali podem estar um gênio da física, um terrorista, um cineasta. Muita gente vai e vem. Doutores. Bandidos. Preciso voltar a essa praça mais vezes.
Coisa que sempre há nela: pregadores. Evangélicos, sempre. Até muçulmanos, às vezes. Outros que misturam suas peculiares convicções ao que conhecem de várias tradições, e misturado à sua "loucura" pregam ao vento. (As pessoas não compreendem nem o louco nem o sábio. É difícil distinguir um do outro, por isso).
Outra coisa. Artistas de rua. Uma garrafinha d'água, com a qual traçam em torno de si um círculo para estabelecer o local da platéia. Os outros ítens variam muito de artista para artista, a maioria usa pouco mais do que a fala, para prender a platéia. Uma vez vi um que tinha apenas um saco no chão, com alguma coisa dentro que se movia. Fiquei lá meia hora. Grande parte faz saltos perigosos envolvendo fogo ou facas. O dinheiro que aceitam é sempre trocado por alguma coisa, normalmente uma medalhinha, ou um papel com oração que entregam enquanto benzem aquele que ajudou.
Moram na praça da Sé muitos mendingos. Vários drogados, bêbados e pedintes.
Nesse dia estava decidido a não ver nenhum artista, nenhuma pregação, nada de ficar observando os corpos largados nas escadas. Queria chegar logo à República e tomar um ônibus, tentar ligar para o chaveiro. Um homem me parou, insistou muito em falar comigo, disse que não queria dinheiro. É o que quase todos dizem, mas no fim acabam pedindo.
O nome desse homem é Machado, e ele queria contar sua história. Eu ouvi. Um pouco, apenas. Ainda atribuo importância demais a mim mesmo para ficar ouvindo pedintes bêbados. Que difícil mudar isso. Tenho sonhos recorrentes que claramente querem equilibrar o meu orgulho, sonhei esses dias mesmo que estava no trabalho usando somente camiseta e cueca, eu esticava a camiseta para baixo, mas logo soltava e cobria apenas parcialmente minhas vergonhas. Também sonho muito que meus dentes estão caindo. Se você não achar meios de se sentir ridículo, rir de si mesmo, alguém vai fazer isso por você. Ou seus sonhos. Ou uma multidão. Virgem, a colheita. Melhor fazer por si mesmo.
Machado me contou de sua vida no Paraná, noitadas no Rio de Janeiro, a mulher que o enchia por causa da bebida, que era professor e compositor. Cantou algumas canções desajeitadas, com letras religiosas. Eu gostei. Parecia algo de tradições populares. Depois de alguns minutos ficou claro que ela era de fato um homem culto, castigado pela bebida, a ela entregue. Vi sinceridade nos seus olhos quando ele chorou. Tudo o que queria, me disse, era escrever suas músicas e ver alguém cantá-las. Muito humilde sabia que, de suas 49 canções, "talvez duas ou três se salvem".
Coincidência ele estar dizendo tudo isso a mim, que escrevo, componho, moro num estúdio com músicos? Eu que amo a tradição popular, de cantigas festivas e religiosas?
No fim ele me pediu dinheiro para pinga e eu dei. Alivie a sua dor, homem. Eu não posso fazer isso, eu não mais que uma dose de pinga.
E me propôs que voltasse ali, onde estaria até o dia oito, se eu quisesse ter uma aula de história, ouvir sobre Buda, Allan Kardec, ou ouvir suas próprias histórias, suas canções. Eu não voltei.
Sinto o tesouro que me escapa como areia pelos dedos entreabertos... sinto o seu hálito de álcool e amargura, um dos perfumes que eu levarei comigo, daqui para a eternidade...
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2 comentários:
delicia de leitura, desde instigar o observados em nós, estava lendo sobre isso hj. Somos o observados e o observado. um livro zen budista maravilhoso: mente alerta.
Depois o passeio de memórias pela Sé. Incrivel. deve entra na catedral também...é lindo, respirar e se refugiar nos seus arcos góticos e no murmurio dos fiéis.
Parabéns meu garoto
Próxima estação Sé, desembarque pelo lado direitodo trem...
abração
Ah !
roubei uma frase sua
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